sábado, 22 de agosto de 2009

Kant e Spinoza, continuando...

O texto que citei antes tem várias partes interessantes. Só não gostei de dois "momentos" do texto. Em um deles pergunta-se se a ética spinozana não seria como uma moral kantiana "avant la lettre"; em outro, aproxima-se o conceito de "potência", de Spinoza, ao de "dever", de Kant, afirmando que a ética de Spinoza, por ser uma ética da potência constituinte, seria também uma ética do dever. Para justificar isso é dito que o único imperativo spinozano seria: "Faça tudo o que puder, porque é a única coisa que deve fazer". Particularmente, não vejo essa aproximação entre os conceitos de "potência" e "dever".
Entretanto, a maior parte do texto é muito bem articulada. A indicação de que tanto Spinoza quanto Kant valorizavam uma ética autônoma - aquela em que a liberdade só pode existir se o indivíduo se impõe a própria norma -, em que a razão tinha peso fundamental na aquisição dessa autonomia, é plenamente correta.
Apesar disso, Kant considera, embora não a enumere claramente entre estas, a ética de Spinoza como heterônima - em que a norma seria imposta externamente.
Um dos pontos altos do texto é o seguinte: "Kant e Spinoza coincidem na crítica à dependência e na defesa da autodeterminação; mas, enquanto um assume a força do desejo e o valor da satisfação, o outro situa a faculdade de desejar entre os impulsos patológicos e a subordina ao sentimento de prazer [que seria um princípio da heteronomia]".
Ambos tentam dizer o seguinte: se há uma adesão pessoal a determinado tipo de comportamento, poderíamos dizer que há liberdade, ainda que se esteja cumprindo uma norma. E essa "adesão" passa, em algum sentido, por uma reflexão empreendida pela razão.
Talvez Kant e Spinoza se afastem quando temos que especificar qual é a "diferença específica" entre o que eles entendem por "razão". A "razão prática" kantiana só se preocupará com a possibilidade de universalização de uma ação, o que só se daria através de uma "lei"; enquanto a "razão" spinozana só se preocupará em aumentar a potência do "ente" que dela faz uso.
Mas a maior diferença, como fica claro pelo texto de Eugenio Fernández, é quanto à participação do desejo na "liberdade". Enquanto Kant pretende eliminar a "faculdade inferior de desejar", que representaria uma forma de "legislação exterior" - e, por isso, heterônoma -; Spinoza faz do desejo a essência do homem, restando apenas "esclarecer" essa faculdade "desejante", a fim de que ela possa querer o que há de mais adequado ao ente, a fim de aumentar sua felicidade... mas de modo ativo e não como uma felicidade que nos submete - uma felicidade passiva -, essa sim representaria uma "coação" que impediria nossa liberdade.

Um comentário:

Fernando Graça disse...

De fato, dever não tem nada a ver com potência. Dever sugere moral, regra extrínseca, lei universal, transcendência. Potência, sobretudo aquela de Espinosa, é consequência da imanência, dos processos.