quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Meio-honesto

Na revista "Filosofia - Ciência & Vida" deste mês há, na coluna "Cinema & Filosofia", de Flávio Paranhos, uma discussão sobre vícios e virtudes.
O último parágrafo do texto apresenta uma curiosa tese: a possibilidade de exsitência do "meio-honesto" (que, a essas alturas da Nova Ortografia, já não deve ter hífen... que mantenho, entretanto, para não perder a "precisão" da ideia).
Está escrito: "Já honestidade, ao contrário do que assume o senso comum, tem, sim, meio termo. Existe meio-honesto? Existe, claro. Existe um terço de honesto, um doze avos e assim por diante. Pode-se ser honesto para, por exemplo, não roubar nunca, mas, ao mesmo tempo, falsificar 'inocentemente' uma carteira de estudante ou sonegar impostos (e continuar a ter um alto conceito de si mesmo, pois 'os preços do ingresso dos cinemas e o mau uso do dinheiro público' justificam a 'pequena' transgressão)".
Flávio Paranhos indica, em nota de rodapé, que já registrou essa posição em seu blog, e fui lá conferir. Compartilho, a seguir, o texto com os amigos, para que reflitam e opinem.
EXISTE MEIO-HONESTO?
“Honestidade, meu amigo, é uma variável binária. Ou se é, ou não se é honesto.” Esta piadinha pode ser ouvida entre uma mordida no pão de queijo e um gole de café, durante o intervalo de uma palestra interessantíssima sobre as conquistas das neurociências. Os nobres cientistas darão gargalhadas imaginando, claro, que eles são a variável honesta e o chefe de seu laboratório, a quem detestam, a não-honesta. Sairão dali, ainda rindo, em direção aos estandes de laboratórios e aparelhos, onde comprarão um microscópio novo por um preço mais barato… sem recibo.
Sim, existe 1/2 honesto. Também 1/3 de honesto, 3/4, 5/8, 1/12 e assim por diante. As possibilidades são infinitas. E mais: hoje posso ser exemplarmente 4/5 honesto, o que não me impede de amanhã, num arroubo egoísta, tornar-me 1/12, para em seguida, arrependido ou não, voltar pro meu exemplar 4/5 (ou 5/6, ou 7/8…).
Honesto, assim como normal, depende da referência. Para saber o que é ou não normal eu preciso de parâmetros. Estes, por sua vez, são dinâmicos. Por exemplo, o que é uma taxa de colesterol normal (desejável)? Menor do que 240. Até um espírito de porco estabelecer outro padrão, menor do que 200 (como se 240 já não fosse difícil o bastante).
No caso da honestidade, os padrões são estabelecidos por diferentes referências. As leis, a moral, a religião, são muitos os candidatos. O candidato escolhido por quem bate no próprio peito e arrota grosso “não existe 1/2 honesto!” é o mais indulgente deles: a própria consciência. O que permite a esse zeloso cidadão acabar de dizer esta frase e furar o próximo sinal, parar em fila dupla pra buscar o filho no colégio, prestar um serviço pelo qual cobrará mais barato sem recibo, dar uma carteirada (se for “otoridade”) e ouvir um sonzinho pra relaxar... um CD pirata. Confronte esse sujeito (um sujeito normal, batalhador, por que não?) com suas pequenas e médias ilicitudes e ouvirá dele toda sorte de racionalização de sua culpa, com a franqueza de quem está convicto da própria honestidade.
Já no terreno das grandes ilicitudes, infelizmente, a era delubiana por que passamos tem-nos brindado com vários tristes exemplos da relatividade da honestidade. E não estou me referindo ao cinismo da novíssima gramática petista pela qual, por exemplo, “caixa 2” vira “recurso não contabilizado”. Refiro-me às inúmeras possibilidades de se sair do mar de lama efetivamente sem manchas. A lei (grotesca) que permite a quem renuncia antes de ser cassado se candidatar na próxima eleição, por exemplo. Ou a que diz que se o dinheiro sujo foi usado pra pagar a gráfica que imprimiu milhares de cartazes com o sorriso hipócrita do canalha, então está tudo bem. Como se fizesse diferença o cafajeste meter a grana no próprio bolso ou no bolso do dono da gráfica, em seu proveito. Ou escapar da punição porque era deputado-ministro, e não deputado-deputado.
“Estou cada vez mais convencido de minha inocência.” Anos de trabalho árduo num laboratório de psicologia comportamental não produziriam um tal tesouro, chave para a compreensão da mente humana, em exercício explícito da racionalização da culpa. Esta pérola expelida pelo deputado José Dirceu recentemente ajuda a compreender outra de sua autoria: “Este governo não rouba nem deixa roubar”. Ora, a referência do “este governo” é a ele próprio. Por seus próprios padrões ele de fato não rouba nem deixa roubar. E está absolutamente convencido disso (ou pelo menos, como Dirceu, “cada vez mais convencido”). Pode até ser que não roube. Mas não é ele quem deve decidir isso.
O perigo de se admitir o óbvio (que a honestidade permite relativizações) é também óbvio. Se todos são, em maior ou menor grau, (des)honestos, então ninguém deve ser punido, cerrrto (sotaque gersoniano)? Errado. Da constatação de que existe, sim, o 1/2 honesto não se segue que não deva haver punição justa. Senão não existirá 1/2 honesto. Não existirá honesto algum.

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