sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Spinoza, Kierkegaard e Pascal

Kierkegaard e Pascal achavam que o homem é intrinsecamente infeliz, fraco e está constantemente em conflito interno, sendo sua saída o "estágio religioso", que ele alcança por uma decisão, a qual é reflexo de um ato de liberdade.
Enquanto isso, Spinoza, ao meditar sobre o homem, no seu "Tratado da Reforma do Entendimento", indica que a busca da beatitude - que corresponde a uma felicidade eterna... incompatível com a infelicidade estruturante dos "teofilósofos" anteriores - "não significa a adoção de uma vida ascética, dedicada à mortificação dos desejos, à erradicação das paixões, à denúncia de sua origem em algum vício da natureza humana e à adoração temerosa de um Deus transcendente, que nos recompensará no além por nossos sacrifícios" (conforme "Espinosa & a afetividade humana", de Marcos André Gleizer). Nada mais distante do que as concepções dos pensadores anteriores.
E quem pensa que Spinoza simplesmente faz digladiarem paixão e razão, na busca dessa felicidade, está completamente enganado. Conforme diz Gleizer, no mesmo livro: "O desejo, a alegria, a tristeza, o amor, o ódio e TODA A GAMA DE AFETOS que colorem nossa existência TÊM CAUSAS determinadas e efeitos necessários tão DIGNOS DE CONHECIMENTO quanto qualquer outra coisa natural. Este CONHECIMENTO, no entanto, NÃO É APENAS uma ATIVIDADE INTELECTUAL... EXISTENCIALMENTE NEUTRA.... Segundo o projeto de liberação proposto na 'Ética', só o conhecimento verdadeiro das causas dos mecanismos afetivos aos quais estamos submetidos permite... reduzir os efeitos obssessivos [das paixões]... Só a POTÊNCIA DO CONHECIMENTO RACIONAL - enraizada no mesmo princípio desejante que se manifesta na vida passional, e, por isso, DOTADA DE UMA DIMENSÃO AFETIVA - permite transformar gradualmente a vida do indivíduo e conduzi-lo a gozar dos AFETOS ATIVOS que constituem o núcleo afetivo da experiência da beatitude: o contentamento interior e o amor intelectual a Deus". (OS GRIFOS SÃO MEUS)
Perceba-se, portanto, que há uma "racionalidade afetiva" conduzindo o processo de "esclarecimento" das paixões, que acabam por tornar-se "afetos ativos". Nada de mero "voluntarismo", nem de mero "racionalismo", portanto... mas muito longe, também, de um "irracionalismo" - ao qual alguns opositores do Racionalismo opõem saídas "estranhas", fundamentadas em "paradoxos" e "mistérios".
Não acho, então, que Pascal ou Kierkegaard conseguissem derrubar o pensamento spinozano, a não ser opondo-lhe a acusação de pensador sistematizante. Mas esse sistema, de pontas bem amarradas, se não é totalmente "flexível", também não é terminantemente "dogmático".

3 comentários:

Anônimo disse...

Taí um lado interessante de Spinoza que nunca foi enfatizado por outros autores, e que me pareceu uma grande contribuição para o estudo da ética. Com isso me interessei mais ainda por ler Spinoza, só que infelizmente ainda não encontrei o "Ética" sem ser da Martin Claret. Mas, não sei se você notou, a impressão que eu tive, que o Spinoza guarda ainda uma leve semelhança com Pascal, só que com mais otimismo: há uma experiência de beatitude, que possui o amor (intelectual) a Deus (não o Deus abrãmico, é verdade) como foco. Talvez seja por isso que já vi um comentário uma vez dizendo que Pascal seria meio que o "contrário" de Spinoza. Mas justamente por isso é que esses dois monstros da filosofia do século XVII possuem semelhanças...

Ricardo disse...

Caro amigo:
Nas nossas conversas, sempre tentei mostrar-lhe que esse "rótulo" de racionalista nunca me pareceu combinar bem com Spinoza. A cada dia essa opinião vai se "cristalizando" em mim. O aspecto que você gostou - a "racionalidade afetiva" -, bem como o interesse ético de Spinoza, não defendendo meramente um "controle" sobre as paixões, mas um "aperfeiçoamento" dos próprios sentimentos, facilitando a compatibilização da felicidade com o desejo.
A maior dificuldade, penso, é compreender exatamente que o conceito de "liberdade", em Spinoza, não é compatível com o de livre arbítrio, o que pode "jogar" os existencialistas contra ele. De qualquer modo, essa "má impressão" poderia ser apagada caso eles pensassem Spinoza como alguém que também valoriza a vida e o aumento da "potência" de existir.

Ricardo disse...

Ops... faltou alguma coisa.
Após o "... compatibilidade da felicidade com o desejo...", eu colocaria "... são pontos que deveriam sempre ser destacados. Entretanto, o período moderno, ao qual Spinoza pertence, arrasta muitos a vê-lo apenas como um mero adversário do empirismo e defensor de um raso a priorismo das verdades. No mínimo, é possível lançar um outro olhar sobre ele. E como eu sei que você gosta de uma filosofia prática, acho que poderia perspectivá-lo pelo aspecto ético".
Por favor, "introduza" essa parte no local que pedi, antes, portanto, do segundo parágrafo do comentário anterior.