O título do post pertence, na verdade, a um livro do filósofo polonês Leszek Kolakowski - que já frequentou este blog em outras ocasiões.
Acostumados que estamos a demarcar artificialmente nascimentos e mortes - tanto de eventos quanto de ideias -, lemos, sem nenhum espanto - esse sentimento tão necessário na Filosofia -, que a Filosofia começa como uma resposta ao Mito, e que instaura um novo modo de pensar, entre os gregos.
A famosa imagem do "Milagre Grego" vem confirmar essa modificação "abrupta" entre a época do Mito - pretensamente inferior intelectualmente - e uma época da Razão/Filosofia. Obviamente, vários se insurgem contra esse reducionismo, vasculhando possíveis "continuidades" não aparentes sob essa visível ruptura... e milagre. Esse é o caso, por exemplo, de Jean Pierre Vernant, que não cessa de recusar essa imagem "lendária" do tal milagre. Aliás, em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo, perguntado sobre esse tema, ele comentou: "Eu não acredito em milagres, já que sou um historiador". A frase soa elegante. Afinal, um cientista - da ciência História - não pode deixar de considerar a causalidade como parte necessária da ciência que estuda. Apesar disso, complicando um pouco a questão, ele prossegue dizendo: "Mas houve, como em todos os períodos de ruptura, algo que não estava contido naquilo que existia antes". E, embaralhando ainda mais nosso entendimento, afirma: "Ao mesmo tempo, a ruptura é também uma forma de herança".
Mais dialético do que isso é impossível! Teses, antíteses e sínteses... que voltam a ser teses, abundam no pequeno trecho. Mas... voltemos um pouco.
Se é fácil parar na primeira parte da resposta do historiador em questão, detendo-se na afirmação de que ele não pode acreditar em milagres, aceitando, então, que ele buscará "causas" para o acontecimento indefinidamente, o mesmo não parece acontecer quando se fala dos filósofos. Posta a diferença entre o discurso mitológico e o filosófico, a maioria destes especialistas dá uma espiada no que veio "antes", reconhece a diferença da intenção, do método investigativo, da construção das explicações para representação da realidade e segue em frente... no que concerne efetivamente à sua área, a Filosofia. Essa "espiada", se fundamental para "informar-se" sobre o que veio antes da Filosofia, não se torna parte do "conhecimento filosófico" em si.
É certo que hoje não se desvaloriza tão enfaticamente o Mito, entendendo-o como um tipo de expressão da realidade. Isso é uma postura "politicamente correta"... quero dizer, "filosoficamente correta". Mas esse reconhecimento expresso nem sempre deixa de corresponder a uma "subvalorização" implícita.
É aqui que entra o filósofo polonês, autor do livro... "dono" do título do post.
Um dos primeiros pontos levantados por Kolakowski é que o mito também corresponde a uma explicação coerente do mundo. Explica-nos o filósofo brasileiro José Guilherme Merquior, autor da apresentação do livro, que, segundo Kolakowski, "o mito se define pela referência a uma realidade incondicionada - e o que motiva essa referência ao incondicionado é a nossa irreprimível necessidade de viver o mundo como algo dotado de sentido [...] O horizonte mítico é o impulso de crença compreensiva, além da (mas não necessariamente hostil à) explicação científica". Ou seja, não basta a "crença", como usualmente se entende ocorrer no mito, há a necessidade de uma "crença compreensiva", isto é, a adesão se dá não só pela fé no conteúdo, mas também porque há a fé na inteligibilidade do mundo... que será efetivamente explicado pela exposição mítica, pelo menos, em tese.
Merquior, aliás, continua explicando o mito de forma muito interessante quando diz: "Sonho de domesticação intelectual do ser, o mito penetra cada um de nossos caminhos existenciais, colorindo cada gesto humano da sua aguda paixão semântica - da sua sede de dar sentido às coisas". E perceba-se o "domesticação intelectual do ser" como uma compreensão real do mundo, não apenas como uma adesão a uma opinião.
Como pensador filosófico, não tenho nenhuma pretensão de fazer apologia do Mito. Mas, parece-me, há uma possibilidade de olhá-lo como um discurso que ajuda a Filosofia a se estabelecer... ainda que, em alguma medida, esta tenha que se defrontar com a linguagem anterior e fazer a escolha de ser diferente daquela.
Que Kolakowski nos conte mais... depois!