sexta-feira, 12 de março de 2010

Definição instrumental

  Em "Marx e a Ideologia (2)", houve um comentário de Existenz que me veio à cabeça por estes dias, enquanto eu assistia a uma aula de Lógica, do prof. Guilherme Wyllie. Por isso, vou resgatar o conteúdo da causa (meu post) e do efeito (comentário do amigo Existenz).
  No post, eu escrevi: "Uma constituição tem que organizar o Estado nas suas diretrizes maiores. Termos jurídicos são utilizados com um sentido 'positivo' e 'objetivo'. É verdade que podemos questionar filosoficamente, por exemplo, o que é a liberdade, mas isso não cabe numa constituição. Nesse ponto, acho, o regramento jurídico em questão foi perfeito e sinalizou que 'liberdade é seguir a lei' - fazendo um 'resumão'...", e, logo depois, coloquei que: "A liberdade, aqui, é uma liberdade prática".
  Nosso brilhante amigo Existenz ponderou: "A respeito do fato de que uma Constituição não pode questionar a liberdade, sendo algo pertinente somente à filosofia, acho que há alguma 'peça' no quebra-cabeça faltando. Qualquer menção à liberdade, esteja ela contida em um tratado de filosofia ou na letra de uma Constituição, já pressupõe alguma noção do que é 'liberdade', e será por esse viés que a menção se colocará. Logo, a Constituição não analisa e critica a liberdade, você está correto, mas não deixa de ser expressão de um pensar que já fez essa crítica, deliberadamente ou não".
  E agora entra o título do atual post: "definição instrumental", que poderia também responder pelo "apelido" de "conceito operativo".
  As diversas áreas do conhecimento não precisam "filosofar" sobre os conceitos que trabalham. Digo "filosofar" no sentido de realizar uma "arqueologia" do termo, procurando seus fundamentos, e uma "historiografia" dele, descrevendo seu "movimento" significativo ao longo do tempo. Basta às diversas "ciências", lato sensu, determinar uma "definição instrumental", ou seja, uma definição que possibilite operar com o termo e com os conceitos derivados daí, que surgirão posteriormente.
  Na área do Direito, por sua proximidade natural com a Filosofia - vários juristas foram e são filósofos -, penso, concordando com Existenz, que o registro efetivo em uma legislação compreenda um "pensar que já fez essa crítica", mas, permitindo-me discordar do amigo, não acho que isso valha para todas as áreas do saber.
  O prof. Guilherme, por exemplo, exemplificou sua explicação com a ciência Biologia. É lógico que um biólogo dirá que a sua ciência estuda os seres vivos. Perfeito! Mas, até que ponto ele radicalizou esse "pensar que já fez a crítica" sobre o que é o ser, sobre o que é a vida, sobre o que é uma ciência, etc? Aliás, a bem da verdade, sabemos que se discute, até hoje, o que é um ser vivo e em que limites se pode falar em vida.
  Portanto, mais do que um "pensar que já fez a crítica", imagino que haja, em vários campos do saber em que aparecem palavras como liberdade, humanidade, ação humana, intenção, etc. mais um mero tratar com "definições instrumentais" e "conceitos operativos/operatórios". Isso não é uma crítica a esses saberes. Talvez seja mais a identificação de que não se pode "filosofar" o tempo todo. Há que, nos campos práticos da atuação humana, tomar os conceitos sobre os quais se pode operar objetivamente - ainda que esses conceitos sejam basicamente convenções e representem apenas parcialmente o que se quer explicar - e utilizá-los... fazer com que sejam úteis - lembrando que a "utilidade" representa bem a "instrumentalidade" do título do post - para a produção de novos conhecimentos.
  Com isso, penso ter esclarecido qual seria aquela "peça faltando no quebra-cabeça", como disse Existenz.

9 comentários:

Anônimo disse...

Olá Ricardo.
Boa “peça” a acrescentar no “tabuleiro”. Com certeza. Mas, toda peça nova encaixada a peças já existentes em um quebra-cabeça cria novas necessidades de encaixes, e a revelação do quebra-cabeça como um todo fica sempre postergado. Assim vejo essa questão.

Então, vamos tentar entrar com novas peças no tabuleiro: não é necessário filosofar para se ter alguma idéia do que é a liberdade. Isso é lógico, do contrário nunca nem mesmo aprenderíamos a falar, pois para isso já precisaríamos saber filosofar! Mas isso não quer dizer que, tacitamente, não tenhamos uma noção particular do que é, por exemplo, a liberdade, para poder aplicá-la na prática (gostei do termo “operacional” para explicar algo assim, mas acho que seria menos “racionalizado” do que um “conceito” seria). Note que isso ainda não é fazer filosofia, e por isso concordamos até aqui. A filosofia se inicia quando os sentidos tácitos começam a ser trazidos ao terreno da reflexão consciente e, assim, elucidados racionalmente. Alguém pode, por exemplo, usar a palavra liberdade muitas vezes, e fazer isso sem problemas, mas quando é convidado a explicar o que é essa liberdade de que fala, o que ela realmente significa, pode ficar sem saber exatamente o que dizer! Mas não quer dizer também que o sentido própriamente usado nesse "conceito operacional" não foi retirado de outros que já tenha tido feito a sua crítica conscientemente.

É por isso que falei que pode ter havido uma “crítica” precedente, mesmo que tácita, o que quer dizer, irrefletida, desconhecida para si mesmo, usada sem uma compreensão consciente de seu sentido. Ora, não é isso necessariamente um uso não filosófico de um termo? E isso, ao mesmo tempo, já não é usar um termo tendo alguma noção prévia de seu sentido? E esse sentido será o mesmo que outros usarão? Mas afinal, qual é o sentido tácito de liberdade usado nessa Declaração mesmo? E, somando-se a isso, quais são suas implicações para o sentido geral da Declaração? Taí um trabalho para o... filósofo! E, essa elucidação, será provavelmente semelhante a crítica prévia esboçada pelos filósofos e ideólogos dos quais aqueles que escreveram a Declaração, tácita e irrefletidamente, se inspiraram.
Um abraço.

Ricardo disse...

Querido amigo:
Como sempre, suas críticas são a proposição de um exercício filosófico... e "exercício" com um sentido quase "físico", pois há que suar, normalmente, para responder-lhe.
Concordo que qualquer peça introduzida no nosso quebra-cabeças exige um novo rearranjo do "estado atual" das peças presentes.
É lógico que, de alguma maneira, um conceito "absorvido" por um texto teórico - de que natureza for... no nosso caso, jurídico - acolhe um grupo de interpretações ponderadas, da qual resta, pelo menos, uma tida como mais significativa para definir corretamente o conceito em questão.
O que eu questionei, no seu comentário ao post - e que, com certa "teimosia" continuo a questionar - foi a "intensidade" dessa "crítica".
É lógico que "conceitos operativos" ou "definições instrumentais" sempre existirão numa dada ciência. E essas "definições instrumentais" deverão possibilitar - como instrumentos que são - seguir adiante. O que eu quis dizer - e mantenho - é que isso não seria tão bem denominado, acho, de um "pensar que já fez uma crítica". Basta chamá-lo de um pensar que "delimitou" seus conceitos, num nível tal que eles permitem seguir adiante com a ciência em questão.
A crítica, imagino, não pode pertencer a esse campo do "tácito", como você colocou. Ela tem forçosamente que ser mais "ativa".
O nível mais "neutro", natural e receptivo pode "receber" influências do senso comum, e até avançar um pouco, numa sistematização racional dos conteúdos recebidos, mas não me parece que isso seja, ainda, uma crítica efetiva.
Particularmente - embora não tenha nenhuma pretensão de conduzir bandeiras de "Verdade" -, não concordo com a visão de uma "crítica" "tácita", "irrefletida", "desconhecida para si mesma" e "usada sem uma compreensão consciente de seu sentido". Não vejo, nessas afirmações suas, o mínimo do que possa ser considerada uma "crítica".
Quando você, entretanto, "flexibiliza" as coisas, falando de uma "crítica prévia", parece falar apenas de uma espécie de "seleção" entre opiniões do senso comum. Aqui, sim, eu concordo com você. Afinal, é assim que começamos a pensar as coisas - através de uma decisão do que, dentro do senso comum, é o mais válido... ou menos inválido.
Muito obrigado pela oportunidade de pensar.
Grande abraço.

Anônimo disse...

Olá Ricardo. Concordo com você em várias coisas que colocou. Porém, eu não disse (pelo menos essa não foi a minha intenção ao formular essas palavras) que aqueles que usaram o termo liberdade na Declaração formularam eles mesmos uma crítica do conceito de liberdade do qual eles próprios não tinham se dado conta. Normalmente, como foi dito por mim, se faz um uso meramente “operacional” do termo (num contexto que poderá ser científico ou não), o que não pressupõe necessariamente uma crítica prévia deste, nem que seu sentido seja conhecido patentemente para si mesmo, mas também não quer dizer que tal sentido não possa ter sido obtido a partir de influências de terceiros. Assim, o que acredito, é que houve uma crítica precedente da “liberdade” por alguns filósofos que influenciaram quem escreveu a Declaração, e, basicamente, o teor próprio dessa crítica permaneceu irrefletido (pelo menos até um certo ponto) por aqueles que redigiram o texto. A crítica, agora, só será possível por um processo de interpretação do contexto geral do documento, do contexto histórico no qual ele foi redigido e das idéias envolvidas na sua elaboração (basicamente retiradas do iluminismo e do nascente liberalismo).

Não acredito, também, ter havido algum tipo de tematização dos termos no sentido usado no campo científico para a formulação da Declaração, apesar do que alguma elaboração racional e consciente me parece provável de ter ocorrido em algum momento, mesmo que, como você falou, não ter tido o peso de uma “crítica”. Eles defendiam a liberdade – e isso quer dizer sempre alguma forma específica de olhá-la, mesmo que eles não se dessem conta expressamente disso –, e essa liberdade eles colocaram no texto de uma lei que acreditavam estar definindo o alcance dos direitos humanos. Logo, esse caso não me pareceu ser um contexto propriamente científico, mesmo que não tivesse a falta de rigor própria do que é dito no âmbito do senso comum.
Um abraço.

Ricardo disse...

Amigo Existenz:
Concordamos, penso, em alguma medida, quando você diz que: "Normalmente, como foi dito por mim, se faz um uso meramente 'operacional' do termo [...] o que não pressupõe necessariamente uma crítica prévia deste, nem que seu sentido seja conhecido patentemente para si mesmo".
Essa foi justamente a minha ideia inicial. Ou seja, fazemos uso de diversas expressões e conceitos que não são submetidos a uma crítica tão severa inicialmente, isto porque esses conceitos nos servem como meramente "operacionais". E, a partir deles, podemos continuar a produzir reflexões "sérias" - no sentido pragmático -, ainda que não sejam filosóficas.
Entretanto, é óbvio, como você demarcou: "... mas também não quer dizer que tal sentido não possa ter sido obtido a partir de influências de terceiros". Eu, aliás, já havia registrado que, nesse campo do Direito, há grande possibilidade de os conceitos sofrerem algum tipo de "pré-análise", ou seja, algum tipo de crítica - ainda que não "rigorosamente" filosófica -, visto que usualmente os juristas "flertam" com a Filosofia em vários momentos. Entretanto, como você bem registra, houve "mentores intelectuais", que incluíam filósofos, na composição desse tipo de documento.
O final do seu comentário condiz, imagino, totalmente com o que eu quis transmitir anteriormente. Também não imagino uma "tematização", do tipo cinetífica, sobre a utilização de cada termo. Acho, apenas, que foi aplicado um pouco de rigor "a mais" do que o senso comum - e isso você comenta neste trecho -, o que já é suficiente para que se estabeleçam o que chamei, desde o começo do post, de "definição instrumental", ou de "conceito operativo".
Portanto, acho eu, esse comentário foi mais de concordância com o que veio sendo dito. Ressalto, apenas, que eu também não falei de um "contexto propriamente científico". Eu imaginei, mais apropriadamente, necessidades pragmáticas guiando essa escolha relativamente "arbitrária" de um "conceito operacional", que funcionará efetivamente, ainda que não tenha a capacidade de representar "plenamente" o conceito em questão.

Anônimo disse...

Bem, acho que concordamos então.

Ricardo disse...

Meu amigo:
Conseguimos concordar em algo? Tem certeza que completamente? Já estou até preocupado. Acho que, na última hora, você tirará um argumento novo da "cartola" e demolirá minha opinião inicial.
Brincadeiras à parte, tenha a certeza que sempre prezo muito as suas divergências, já que elas vão alimentando o meu universo filosófico de novas perspectivas.
E - se você não sabe, deveria saber - isso tem realmente modificado algumas opiniões primeiras daquele Ricardo com quem você conversava na esquina, logo após nossa prática meditativa.
Só posso agradecer sua sempre valiosa participação.
Abração.

Anônimo disse...

Olá Ricardo. É, acho que a concordância apareceu, pelo menos em relação ao caminho que se deu o debate. Mas se você ficou desapontado, eu posso continuar discordando (rs).
De qualquer forma é sempre muito bom entrar nessas questões com você, pois sempre nos enriquecemos no processo (me incluo fortemente nisso), e, obviamente, que isso irá implicar em alguma alteração no que já pensávamos antes (veja, por exemplo, a questão sobre o uso “operacional” de um conceito, foi uma contribuição sua que eu passei a defender no meu texto).
Eu já havia desconfiado em nossas últimas cartas que aquele Ricardo que conheci no início já teria se modificado (será que não foi, principalmente, por causa do seu crescente contato com o pensamento de Kant e com outros filósofos contemporâneos?), mas não achei que eu tivesse alguma influência forte nisso, pois, apesar de algumas concordâncias, parecia que continuamente abordávamos de formas distintas os tópicos tratados. Mas agora eu fiquei curioso em saber como “anda” esse “novo Ricardo”. Talvez, um dia, você possa mostrar algo desse novo pensar em algum de seus posts.
Um abraço.

Ricardo disse...

Caro Existenz:
Em primeiro lugar, meu horizonte filosófico foi se ampliando necessariamente em função de nossos "embates pós-meditativos". Se os "grandes", como Kant, Heidegger, Ortega y Gasset foram se tornando mais íntimos, isso certamente se deve a uma ponte estabelecida por este amigo que agora responde pela alcunha de Existenz. Rsss.
Continuamos divergindo em alguns pontos - certamente... e "salutarmente" -, mas, que houve uma aproximação de pontos de vista, houve. Eu nem posso dizer que o deslocamento foi seu. Talvez, só eu tenha me movido... em relação, penso, a um certo "historicismo"... e "flexibilizado" minha ideia mais essencialista, principalmente no que diz respeito ao homem.
Sua participação no blog - principalmente quando discordamos. Rsss - é essencial para a minha proposta. Segundo meu compadre, a ideia do blog é mais o registro do que a discussão, mas não nos prendemos a fórmulas preestabelecidas... afinal, somos filósofos! Rsss.
Sobre esse "novo Ricardo", talvez seja o mesmo "velho Ricardo" - aliás, cada vez mais velho. Rsss -, com uma experiência do pensar filosófico mais "engajado" existencialmente - gostou dessa? Rsss.
E, em algum futuro, haverá espaço para nossas conversas prosseguirem... ainda que por e-mails. Afinal, elas foram, e são preciosas demais - pelo menos, para mim - para serem perdidas.
Novamente, muito obrigado pelos questionamentos. E, por uma questão dialética, não é bom que concordemos! Rsss.
Grande abraço... a você e ao seu irmão.

Anônimo disse...

Olá Ricardo. A mudança é, na verdade, a evolução de um pensamento, a sua constante maturação frente às dificuldades que ele vai encontrando com o tempo. Um pensamento que não muda nunca é problemático, pois ele se cristaliza, se estagna, se dogmatiza.

Logo que, naturalmente, o meu pensamento mudou também. Mas, talvez, enquanto o seu fica mais “existencialmente engajado” ou meu fica mais “socialmente engajado” (mas ainda com a base firme na existência), e de uma forma distinta em relação àquela defendida pelos existencialistas, por que o Outro possui uma importância de tal forma no existir que a liberdade, por exemplo, não pode mais se ligar à autenticidade, ao livre arbítrio, ou à valorização sempre crescente do “si mesmo” frente ao entorno (digo entorno para falar tanto do ambiente imediato quanto do ambiente cultural do qual estamos imersos). Essa relação cada vez mais intrincada entre o Eu e o Outro (que não possui nenhuma relação com a inautenticidade, pelo menos não até um certo espectro), ganha um cenário distinto do que ocorre normalmente na filosofia da existência, e com isso, eu não sei até que ponto a sua aproximação comigo esteja realmente ocorrendo no sentido do qual está colocando.

Mesmo sobre a questão da “flexibilização” da essência humana do qual toca, e que parece que estaria se aproximando mais do que diz o existencialismo – no caso do existencialismo, na minha opinião, acho ficar muito focada na própria individualidade, e numa individualidade que se determinaria demasiadamente por seus contínuos e mutáveis projetos futuros - no meu entender, precisaria se “assentar” mais na relação dialética que possuímos com o “não eu” (inclusive aquilo que não é propriamente humano), pois só assim a visão autrocentrada na existência, que é típica da fenomenologia existencial, pode se sustentar. No entanto, como você mesmo falou, as divergências entre nós seria o que nos enriquece, seria o motor para causar essa evolução no pensamento do qual falei. E, além disso, não acho que essa minha evolução não tenha tido relação com nossas cartas, pois, eu me lembro disso, para você a relação de causa e efeito possuía um peso na nossa individualidade que não poderia ser esquecido (e vice-versa, pois, no meu entender, é uma relação dialética, de mão dupla), mesmo que no meu pensamento ganhe um matiz próprio segundo as minhas próprias idiossincrasias.
Um abraço.