terça-feira, 23 de março de 2010

"O Portal da Filosofia" (3)

  Como eu dissera que faria, no segundo post dessa "série", começarei a contar o que diz o livro "O Portal da Filosofia" por Machiavelli e "O príncipe".
  Embora quase não haja novidades, o valor do livro, neste caso específico, é compilar uma série de informações que o público menos acostumado a ler o italiano desconsidera, e, a partir disso, toma-o como um "crápula".
  Conta-nos o livro que "O príncipe chama atenção ... pelo seu caráter de novidade e pioneirismo, independentemente de seu valor moral. (...) Pela primeira vez se contemplava a questão política 'a nu', sem acréscimos metafísicos, morais ou teológicos".
  Importante esse começo, pois já explica bem o caráter inovador da obra e o plano de trabalho dela, histórico e material, ao contrário das idealizações anteriores.
  E o aspecto de "precursor" do italiano é novamente destacado, logo a seguir, em: "A filosofia política inicia uma nova época a partir de Maquiavel, ao conceber o Estado como uma forma de organização criada pelos próprios homens e ao buscar examinar a ação política à parte de uma perspectiva moral. Nesse sentido, Maquiavel é menos imoral do que amoral, conscientemente abdicando da questão moral, desvinculando-a de sua filosofia política".
  O destaque para a "amoralidade", em vez de "imoralidade", no texto machiavellino é muito bem colocado, bem como a identificação da tese de um afastamento de um paradigma primeiramente moral nos assuntos políticos. Usualmente, vemos a política como um campo ampliado da moral, mas o italiano não vê as coisas por esse viés. Porém... que se preste atenção para o fato disso não significar a admissão de comportamentos "imorais".
  Reflita-se sobre o fato de que o assunto principal do livro é a "eficiência na manutenção do poder", mas, como eu sempre faço questão de destacar, com o objetivo primeiro de manter livre do domínio estrangeiro e em harmonia o que viria a ser a Itália moderna. Afinal, além dos conflitos internos, entre os diversos Estados, como Florença, Veneza, Milão, Roma e Nápoles, havia sempre um destes aliando-se a um Estado estrangeiro, assegurando internamente o atendimento de interesses externos.
  Reforçando, então: Machiavelli não estava ensinando um indivíduo a manter-se no poder apenas para realizar um desejo pessoal desse governante, mas para assegurar a unificação e a libertação da Itália do domínio estrangeiro. "O Portal..." nos conta que "O último capítulo do seu livro traz o seguinte título: 'Exortação para libertar a Itália dos bárbaros'. Por 'bárbaros', entendia ele os alemães, franceses, suíços e espanhóis. Com tal obra, Maquiavel pretendia contribuir para que essa pátria dilacerada 'finalmente encontrasse um salvador'".
   Certamente, as ideias "messiânicas" de Machiavelli podem ser questionadas em relação à sua executabilidade. Mas o fato é que ele pretendia criar os meios teóricos para fundamentar essa "aventura" política. E, reconheçamos, a diplomacia - da qual Machiavelli participou ativamente - não dispõe de todos os recursos para realizar uma obra de tal envergadura... ainda mais à época, com tantos príncipes e reis querendo expandir seus limites de poder a qualquer custo.
  Uma informação - essa, sim - que me era desconhecida é que "... o título O príncipe não fez muito sucesso inicialmente... por que havia muitas obras com esse título... Desde a Idade Média, esse tipo de livro se constituía em uma tradição, um gênero chamado de fürstenspiegel [literalmente: 'espelho de príncipes']... Nesses... pretendia-se apresentar ... a imagem ideal... de um governante perfeito (...) Os fürstenspiegel estabeleceram como norma moral da política a máxima de que só deveriam ser considerados bons governantes aqueles que orientassem sua atuação por princípios morais e respeitassem os direitos básicos de seus súditos. (...) Maquiavel recorre à tradição dos fürstenspiegel, mas a utiliza como um invólucro, no qual insere um conteúdo bem diferente. Os valores morais são impróprios, segundo Maquiavel, para orientar os príncipes em seu agir político. O príncipe não vive em um mundo de anjos, mas em um mundo de força, intriga e inveja".
  Talvez nos agrida um pouco ler estas palavras, mas o fato é que isso não é uma mera teoria, construída sobre bases metafísicas e especulativas. Machiavelli fez uma fenomenologia dos governos existentes.
  E o livro destaca bem isso - e muito mais -, quando diz: "A experiência concreta... leva Maquiavel, primeiramente, a uma imagem diferente do ser humano. A filosofia política clássica, como fora desenvolvida pela Antiguidade, sobretudo por Platão e Aristóteles, considerava o ser humano como um ser racional, no qual a razão se impunha naturalmente sobre as paixões e os instintos. A ordem política construída a partir desse modelo de soberania da razão significaria a natural autorrealização do ser humano. Foi desse modo que Platão se viu conduzido à ideia dos reis-filósofos. Para Maquiavel, contudo, são as paixões que dominam o ser humano. Um soberano que aja sempre de modo racional, ou que suponha que seus súditos reagirão de forma racional, fracassará forçosamente (...) Segundo Maquiavel, os soberanos que quisessem ter sucesso, em vez de se dirigirem à razão dos homens, deveriam, antes de tudo, atentar para suas paixões... A estratégia política antevista por Maquiavel é o que hoje chamamos de 'populismo'".
  Em termos meramente pragmáticos, parece que Machiavelli realmente constituíu uma escola poderosa.
  Mas há que se refletir se a visão construída por Machiavelli sobre a natureza humana estaria tão errada assim.
  Por hoje, é só...

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