quinta-feira, 18 de março de 2010

Analisando uma cultura "de fora"

  Se, por um lado, é impossível fazer algum tipo de crítica sem um mínimo de afastamento, por outro, também não é viável analisar uma cultura a partir de um ponto totalmente externo, sem um mínimo de "simpatia" com ela - no sentido de "sentir com"... ou de "sentir do mesmo modo"... pelo menos, hipoteticamente.
  Faço essa observação a partir de uma dúvida que presenciei ser esclarecida, esses dias, referente às crenças do povo grego em relação a uma vida post mortem. Segundo o prof. Fernando Muniz, de um modo geral, o grego não cria na possibilidade de "continuidade" da vida, enxergando como fato natural esse termo do ente humano, que, por definição, é um ente finito.
  É verdade que alguns grupos específicos gregos acreditavam na "metempsicose", o que garantiria a continuidade do "princípio anímico" de cada ser humano, mesmo passando de corpo em corpo.
  A base da pergunta, muito bem feita, aliás, foi a ideia das "almas", após a morte do indivíduo, ficarem no Hades - o mundo mítico subterrâneo.
  No texto "Apologia de Sócrates", de Platão, o prestigiado tradutor Jaime Bruna, em nota de rodapé, informa que: "Segundo criam os gregos, após a morte, iam as almas para o Hades, espécie de limbo, lugar escuro e frio, situado no âmago da terra, onde continuavam a viver como sombras" (Grifo do tradutor, indicando que esse "viver" é diferente da nossa perspectiva mais corriqueira). Essa ideia apoia o que foi dito pelo ótimo professor Muniz, que explicara que a "alma" que ia para o Hades não tinha as qualidades individuais do ser humano a que pertencia... eram meros "duplos", ou "sombras", este último termo adotado pelo tradutor Jaime Bruna. Ou seja, a tal alma/psiquê era "desindividualizada", inconsciente de sua própria personalidade anterior... algo como uma espécie de "zumbi".
  Entretanto, o próprio texto indica algo um tanto diferente. Sócrates, já no final do escrito platônico, diz: "Se, em chegando ao Hades, ... a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a Justiça... não valeria a pena a viagem? [...] Não me seria desagradável ... passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver quem deles é sábio e quem, não sendo, cuida que é".
  A ideia que fica determinada pelo texto original, portanto, é a de que, sim, existiria uma continuidade da personalidade... tanto é que Sócrates pretende continuar sendo a "Mosca de Atenas", ou melhor, a "Mosca do Hades" na sua nova condição.
  E a dúvida continua...

2 comentários:

Prof. Guilherme Fauque disse...

Ainda tem o caso do soldade de Er que o Platão narra....

Eu, particularmente, sempre tive muito interesse nesta pesquisa, embora, obviamente, nunca tenha chegado a nenhuma conclusão definitiva (ainda bem) - rsrsrsrsrs.

Mas dá "pano para mangas" aí.

Abraços

Guilherme
PS: Estou com um texto novo lá no blog de Philosophia, aparece lá.

Ricardo disse...

Querido amigo Guilherme:
Infelizmente, além de estar em falta comigo mesmo - já que o "Spinoza e amigos" não tem sido atualizado com a frequência que eu desejaria -, ainda estou devendo - e muito! - aos blogueiros que também vêm me visitar... e que eu gosto tanto de ler - e tu és um desses.
Esforçando-me para conseguir atualizar o meu próprio blog... empenharei mais uma energia em visitar - e arriscar minhas opiniões - nos posts desses tão caros amigos... Prometo!
Em relação ao mito de Er, tenho apenas a observação de que ele é da "maturidade" de Platão, portanto, parece já haver uma evolução da concepção deste filósofo de um post mortem com consciência - que seria necessário para validar a ideia das reminiscências. O problema é constatar que já existe uma concepção - ainda que seminal - disso na "Apologia", que é um de seus primeiros (dos primeiros... ou até "o" primeiro) escritos, o que ia contra a concepção grega corrente.
Então, que tal continuarmos "produzindo" esse "pano para mangas"? Rsss.
Abração... e pode deixar que aparecerei.